Amar Cristo nos Irmãos

Caros irmãos e irmãs, hoje gostava de meditar convosco o tema que é muito querido e venerado pelo Povo de Deus de todos os tempos. De facto, amar, não só o verbo por excelência, mas é o rosto de cada cristão/ã, é a essência e a identidade do Povo da Aliança e por fim, é o rosto do próprio Deus em três Pessoas distintas: Pai, Filho e Espírito Santo.

 

Permitam-me abrir a porta da nossa meditação com uma passagem do Cântico dos Cânticos: «Nem as águas caudalosas conseguirão apagar o fogo do amor, nem as torrentes o podem submergir. Se alguém desse toda a riqueza de sua casa para comprar o amor, seria ainda tratado com desprezo» (Cat. 8, 7). O amar Cristo nos irmãos é uma eterna novidade: cada dia descobrimos e redescobrimos o rosto amante de Deus nos demais e, sobretudo, naqueles que são marginalizados e descartados pela sociedade e, muitas vezes, pelos homens da Igreja. É uma eterna novidade porque amar os outros como Deus nos amou, implica uma caminhada interior, este caminho que nos conduz ao crisol do amor uno e trino, ou seja, às labaredas do amor divino para podermos purificar/ «sarar»-nos (sentidos, sentimentos, afetividade, memória, vontade e entendimento) com o beijo curativo do Espírito Santo. Tal como foi entoado no Cat. 8, 7, nada nem ninguém pode comprar o amor porque o amor foi, é e sempre será o Dom. O Dom é dado na liberdade e na gratuidade do coração porque só um coração livre e apaixonado como o coração de Jesus que pode amar sem conhecer o limiar do infinito. Nós, os cristãos (pequenos cristos), somos chamados a imitar, não intrinsecamente, mas filial e esponsalmente, o coração do nosso Amado. Perguntamos nós, isto é possível? A resposta é sim com um pleno consentimento. Deus-Filho deu o seu sim à humanidade tornando-se uma criança frágil, um adolescente aventureiro, um jovem amável-dócil-fiel e um adulto responsável-corajoso, por fim, um amante da humanidade; resumindo, tornou-se homem como nós na nossa exaltação e na nossa fragilidade. E nós? Na nossa liberdade e fragilidade, ousamos arriscar o nosso pleno consentimento? Temos a ousadia de lançarmo-nos à aventura do regresso ao abraço do Pai tal como fez o filho pródigo?

 

Amar os demais não é uma questão meramente solidária ou social, mas, oferece-nos uma experiência da transcendência; esta transcendência que «impõe-se justamente por meio do concreto de uma atitude de oração que transformará toda a nossa existência – marcada assim pela busca quase espasmódica do amor humano – tornando-se uma das mais tocantes “cartas de amor” a Deus, as únicas que “se deveriam escrever”» .

 

Amar significa ser “arco-íris” para os outros. O arco-íris é uma espécie de paleta em que o grande pintor, Senhor do Universo, embebe o pincel com o seu amor para tornar o mundo mais belo, harmonioso, apaixonante e vivo. Amar implica sair do nosso próprio egoísmo e conquistar a liberdade: gostava de imaginar cada um de nós como o barco. Porquê? Porque o barco parece ter vida própria e um destino inteiro a descobrir e a viver sob o céu infinito pontilhado de estrelas capazes de transformar cada saudade num rebento de desejo. Contemplar a nossa vida como um barco e o tempo da nossa existência como um porto de que somos chamados a zarpar, pode dar-nos aquela simplicidade desejada de enfrentarmos cada dia com a devida clareza e a coragem necessária. .

 

A desumanização é o oposto do amor, é o paradoxo da santidade. Santidade não é senão a fecunda humanização vivida pelo homem à luz do Amor encarnado que é Jesus. Etty Hillesum, mística judia e mártir do campo de concentração, recorda-nos que a única maneira de refrear a desumanização nossa e dos outros é mergulhar na sabedoria, docemente depositada como poeira de estrelas nas prateleiras da história, sem nos esquecermos de encontrar o centro de nós mesmos. Para nos tornarmos mais humanos assim possamos amar mais e melhor os demais, temos diante de nós os gestos de Jesus: os gestos diários que passam frequentemente através da simples partilha da comida que se torna gesto sacramental na véspera da sua paixão e gesto reconciliador depois da sua ressurreição nas margens do lago, onde ecoa o convite mais íntimo e materno: «Vinde comer» (Jo. 21, 12).

 

Amar os inimigos é uma parte integrante de amar os demais. Mas, amar os inimigos é uma história que nasce, muitas vezes, do imprevisto. Tal como afirmou o Einstein: «O acaso é Deus que se passeia incógnito» , eu diria que o imprevisto é forma de Deus agir intervindo misteriosamente na nossa história. O Nicholas Sparks, autor de tantos romances, deu-nos uma bela definição da história, ou melhor, uma definição do início/ do começo da história: «Onde começa, de facto, uma história? Na vida, são raros os inícios bem marcados, aqueles instantes dos quais um dia podemos dizer: “foi ali que tudo começou”. Mas, às vezes, o destino cruza o nosso caminho e inicia uma sequência de acontecimentos que levam a um desfecho imprevisível» .

 

O amor que nutrimos pelos demais é sempre um processo alquímico-espiritual em que, a partir dos elementos habituais e ordinários da vida e das condições tão duras e cruas da história, foi capaz de se lançar na busca da esmeralda do amor que talvez não seja mais do que uma nova compreensão e uma nova forma de amar: ajoelhando e lavando os pés dos demais e termina com o ósculo da caridade. A propósito da felicidade (que é fruto de amar e ser amado), é bom recordar a moeda que o imperador Adriano mandou cunhar segundo a releitura da sua vida feita por Marguerite Yourcenar: humanitas, felicitas, libertas. A felicidade é como o fiel da balança que nos permite dar peso à nossa vida, deixando que os dois pratos da humanidade e da liberdade se equilibrem mutuamente. A felicidade fundamenta-se na partilha e não na exclusividade egoística, de maneira a poder ser cultivada numa humanidade livre radicada na liberdade humana.

 

O ódio é o inimigo do amor. O ódio é uma derrota da nossa capacidade de sermos humanos, a despeito de todas as ameaças. Odiar significa fazer com que o mal vença a nossa vontade e a nossa capacidade de sermos bons, de sermos verdadeiros e de sermos belos. O antídoto para esta “doença da alma”, usando a expressão de Etty Hillesum, é o amor. Amor à bondade, à verdade e à beleza impede radicalmente que cada um de nós consinta no ódio. Por isso, curar-se do ódio é verdadeiramente uma tarefa sempre atual e um desafio sempre renovado.

 

O outro pilar que sustenta o amor aos demais é a paciência. A paciência é aquilo que cada um de nós tem de dar à luz dolorosamente depois de ter concebido amorosamente. A paciência é o segredo da árvore que, generosamente, levou em si a carga de cores e perfumes oferecidos de bom grado ao vento… sem se lamentar. A paciência é aquele amor amadurecido como o vinho que não se esquece do trabalho do lagar nem da canseira do pisar dos cachos. Como o vinho, a paciência deixa-se beber com gosto depois de ter deliciado com subtil e odoroso perfume. Finalmente, o dom da paciência remete-nos para o amor paciente e para a paciência amorosa do nosso Deus, tal como afirmou o teólogo de Copenhague, Sören Kierkegaard: «Deus só tem uma única paixão: amar querer ser amado. Ele não pode não amar, quase como se fosse uma fraqueza, ao mesmo tempo que, certamente, é essa a sua força».

 

Finalmente, terminamos a nossa meditação com a oração. A oração é uma grande porta para apreender a amar e é a escola para apreender a arte de viver sem restrições interiores nem barreiras em relação a todos com quem somos chamados a partilhar a longa peregrinação da vida. A fonte de graça recebida na oração torna-se uma tarefa para abrir sulcos hospitaleiros em que as pequeníssimas sementes do bem possam ser guardadas, cultivadas até germinarem. No amor aos irmãos, a oração acompanha e exprime a necessidade insuprimível do coração humano de se abrir continuamente ao outro, debruçar-se no limiar do abismo mesmo que nunca se lance no vazio. Na escola da oração, apreende-se a esperar os tempos e os modos de um conhecimento que não pode existir a não ser na forma de um amor que se dá e se perde.

 

Para mergulhar-se no oceano da oração, precisamos da música calada, do silêncio sonoro porque é uma «grande pedagoga que realiza o trabalho de trazer à luz os recantos mais ocultos do coração, que nós nem sequer ousamos confessar a nós mesmos, de purificação, de retorno da pessoa que, por natureza, está mais ou menos egocentrada, e que, lentamente, se vai centrando em Cristo, mediante o secreto e fino sopro do Espírito Santo» . Só com e através da oração que possamos exclamar como Teresa exclamou em relação à pessoa do Garret, o amado da alma dela: «quando ouvir o oceano, será o teu murmúrio; quando vir um pôr do sol estonteante, será a tua imagem no céu» .

 

Como Maria de Magdala, também comungamos o gemido de amor que é segredo e, ao mesmo tempo, fruto da nossa oração íntima com Deus, da aceitação de nós próprios e do amor generoso e criativo que vivemos partilhando com os demais: «…a quem senão a ti, poderia eu enviar estas cartas de enamorada? A quem revelar de repente este saco de segredos, esta catarata de amor e suspiro que se despenha do meu coração? Quem, senão tu ó Jesus, pode entender estes rasgos de sol e de sombra que me inundam?» .